O 2 de julho – Independência do Brasil na Bahia

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2 de Julho - Independência do Brasil na Bahia. Foto: Marisa Vianna.

A convergência de forças de todo o país que quase ninguém conhece

Uma festa popular baiana cheia de significados que vem sendo redescoberta pelos turistas

2 de Julho – Independência do Brasil na Bahia. Foto: Marisa Vianna.

Na madrugada de 2 de Julho de 1823, a cidade de Salvador amanheceu quase deserta: o exército Português deixou em definitivo a província da Bahia. Dizem* que o dia nasceu bonito, sem as chuvas de junho. O sol brilhou!

Os baianos conhecem esta data como sendo a Independência do Brasil na Bahia, que celebra a vitória dos brasileiros na guerra travada na então província da Bahia, por mais de 17 meses (de fevereiro de 1822 a julho de 1823) contra as tropas portuguesas. Com a vitória do Exército e da Marinha do Brasil na Bahia, consolidou-se a separação política do Brasil de Portugal.

Sendo assim, com base nos estudos de Luís Henrique Dias Tavares, historiador, professor emérito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o 07 de setembro de 1822 é uma data simbólica, não se tratando da real data da independência do Brasil, até porque um pedaço enorme do país (região Nordeste) ainda não era independente.

Este assunto é curioso e até mesmo polêmico para quem não é da Bahia. O fato é que talvez você nunca tenha parado para imaginar o que aconteceu na guerra da independência na região Nordeste, com características muito diferentes da maneira como o Brasil foi separado de Portugal.

O 2 de Julho ficou na reverência patriótica dos baianos que, desde então, estabeleceram a tradição de comemorá-lo anualmente com a repetição da entrada do Exército Pacificador na cidade de Salvador. Você já conhecia esta história? Então vem com a gente e melhor ainda, programe-se para conhecê-la ao vivo, participando da festa!

Confira a programação 2023 neste link.

Diferentes pontos de vista

Esta matéria conta a história através das explicações do que acontece nas ruas da cidade durante o cortejo do 2 de julho. Além de Luís Henrique Dias Tavares, três figuras interessantes fazem relatos que nos fazem entender melhor essa comemoração.

Marisa Vianna, uma das maiores fotógrafas da Bahia vem fotografando o 2 de julho há quase 20 anos. Sua grande característica é fazer registros documentais com leveza e poesia, dando movimento, calor e sentimento a cada instante capturado por sua lente. Suas imagens e histórias nos inspiraram a ir para a rua e entender de fato o que é a Independência do Brasil na Bahia.

“(…) conseguir transmitir o sentimento é o que me move. (…) conseguir levar a emoção a outra pessoa.”, Marisa Vianna conta sobre seu caminho de quase 40 anos de trabalho.

Com informações preciosas e discurso afiado, Jaime Nascimento, dá uma verdadeira aula sobre o assunto. Ele é Bacharel em História pela Universidade Católica do Salvador – UCSale associado do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), onde também é Coordenador de Cultura e Membro do Comitê Editorial.

Sobre a cerimônia que acontece em frente à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho, Dona Cosma Pereira de Miranda explica a relação da Irmandade do Rosário com a festa. Ela é secretária da Ordem Terceira e, há 24 anos, é Irmã do Rosário. Para quem não sabe, esta é uma irmandade católica apostólica romana de cunho africano.

Do começo – O Fogo simbólico e Te Deum** na Basílica

O primeiro passo é o fogo simbólico que representa a união dos povos que lutaram pela independência. O fogo é aceso no dia 30 de junho na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Cachoeira, no recôncavo baiano. Neste mesmo dia, também é celebrado o Te Deum pela Independência do Brasil na Bahia, uma louvação na Catedral Basílica de Salvador, no Terreiro de Jesus, Pelourinho (que em 2022 aconteceu na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, também no Pelourinho).

O rito do fogo simbólico é representado por uma chama em uma tocha que percorre diversas cidades sendo passada de mão em mão por atletas amadores, oficiais do exército, atletas profissionais, artistas e líderes políticos com destino à cidade de Salvador, no bairro de Pirajá, onde se acende uma pira no dia 01 de julho.

Para entender melhor a história, foi nesta igreja, lá em Cachoeira, que no dia 25 de junho de 1822, durante a celebração do Te Deum, que a escuna canhoneira enviada pelo Brigadeiro Português Madeira de Melo para fechar o porto da cidade disparou o primeiro tiro contra a vila, e assim a guerra se desencadeou. Por este motivo, o Fogo Simbólico sai de lá.

Foram brasileiros que, de fato, libertaram a cidade de Salvador, com armas em suas mãos, começando em Cachoeira, Santo Amaro, Maragogipe, São Francisco do Conde, Nazaré das Farinhas, Jaguaripe, Saubara, formando um exército em frangalhos. Depois, eles se juntaram aos brasileiros que desceram lá de Caetité e de outras partes do sertão e da Chapada.

Personagens da História e Figuras simbólicas

A festividade do dois de julho sempre foi mais ligada às causas populares. As figuras de Maria Quitéria, Joana Angélica, o Corneteiro Lopes e João das Botas falam de um imaginário totalmente diferente do que se tem da independência do Brasil. A batalha gerou seus heróis, neste caso, quase todos originários das camadas mais pobres da população e reverenciados até hoje com carinho pelos baianos. São nomes inesquecíveis nesta saga que não existem nos livros didáticos de história do Brasil e, portanto, são desconhecidos para a maioria dos brasileiros. Posteriormente, foram acrescentadas as figuras simbólicas do Caboclo e da Cabocla. Hoje eles são “as estrelas” do cortejo, saindo em carros emblemáticos.

O Caboclo e a Cabocla representam o exército que lutou na guerra formado por soldados regulares e voluntários, brancos pobres, tupinambás, negros libertos e pessoas escravizadas enviadas pelos seus senhores. Por todo o caminho, essas duas figuras simbólicas recebem dos passantes flores, frutas e bilhetes com pedidos. A famosa expressão baiana “Vá chorar aos pés do caboclo” surgiu daí.

Segundo Jaime Nascimento, o primeiro desfile em 1824 tinha só a representação do Caboclo, não tinha a Cabocla. O fato curioso é que ainda não era uma escultura, mas sim um senhor mestiço (representando o povo), carregado em um dos carros abandonados pelos portugueses. Em 1826, foi encomendada uma escultura de Caboclo com uma lança, matando a serpente, que representava a tirania portuguesa. O historiador prossegue explicando a simbologia dos personagens:

“Já em 1846, o Governador da Província, Soares de Andrea, propõe a substituição do caboclo pela cabocla. Esta seria a imagem de Catarina Paraguaçu representando a primeira família mestiça brasileira: a índia que casa com o europeu, Diogo Álvares (Caramuru), sintetizando o encontro das nações. (…) A partir de 1846, passam a ser os dois, o caboclo e a cabocla”, explica Jaime, matando a curiosidade de quem não sabia os detalhes desses símbolos. Com o passar dos anos, eles se tornaram divindades do candomblé, mais especificamente da nação Angola. Eles reconhecem os caboclos primeiro como uma entidade e segundo como um ancestral. Por isso se oferecem frutas”, explica.

Quanto à Maria Quitéria, é fácil encontrar pessoas caracterizadas como ela pelo caminho, com um uniforme bonito e uma arma na mão. Segundo Luís Henrique Dias Tavares, ela teria deixado a fazenda do pai ao escutar notícias dos acontecimentos de 25 de junho de 1822 na vila de Cachoeira. Com roupa masculina, fornecida por seu cunhado, apresentou-se voluntária. Maria Quitéria se destacou na defesa da Barra do Paraguaçu, soldada do batalhão Voluntários do Príncipe.

“ Maria Quitéria foi reconhecida pelo Exército Brasileiro como Patrona do Corpo Auxiliar do Exército Brasileiro por sua relevância nos combates. Por determinação do exército, é obrigatório que tenha uma imagem (um retrato ou uma pintura) de Maria Quitéria em todos os quartéis do Exército Brasileiro”, explica Jaime.

A abadessa sóror Joana Angélica virou mártir da independência por se colocar na porta do claustro do Convento da Lapa durante a tentativa de invasão de soldados e marinheiros portugueses ao local. Pelas ruas, é possível achar menções à religiosa, até mesmo em crianças caracterizadas.

João das Botas foi um marinheiro Português que aderiu à autoridade do príncipe Pedro e, com seu conhecimento, instruiu Cachoeira, Santo Amaro e São Francisco do Conde na armação e comando dos barcos para combater a frota portuguesa, sendo decisivo para a guerra.

“João das Botas é reverenciado pela Marinha. Todos os anos, entre janeiro e fevereiro, tem a Regata João das Botas, na Baía de Todos os Santos, promovida pela Marinha, em reconhecimento aos seus feitos”, pontua Jaime.

O Corneteiro Luís Lopes talvez tenha ficado no coração dos baianos exatamente porque ninguém sabe ao certo se a história contada é verídica ou não, o que deixa tudo mais curioso. Nenhum estudioso tem informações aprofundadas, mas o que se sabe é que ele participou do conflito que ficou conhecido como a Batalha de Pirajá, onde provavelmente teve um papel decisivo. Reza a lenda que em vez do toque de “recuar”, deu o sinal de “cavalaria avançar” e, em seguida, o de “degolar”. E quem acabou partindo em retirada foram as tropas lusitanas, imaginando que os brasileiros tinham recebido reforços.

Já os Encourados de Pedrão hoje não saem em grande número nos festejos. O Ministério Público da Bahia proibiu a participação de animais no cortejo. Na história, eles formaram um pelotão de vaqueiros, vindos da Chapada Diamantina, que também foram à luta. Por isso “encourados”, pois suas armaduras eram feitas de couro.

Tem apenas alguns anos que uma mulher chamada Maria Felipa passou a ter sua história contada e celebrada como uma das heroínas do povo. Maria Felipa de Oliveira, uma mulher negra, pescadora, marisqueira e ganhadeira, lutou nas batalhas de Independência do Brasil na Ilha de Itaparica (Bahia – BA). Ela teria comandado um grupo de cerca de 40 mulheres para, primeiro, seduzir os portugueses e, depois, atear fogo às embarcações deles. A ela também é atribuída uma famosa surra de cansanção nos soldados portugueses.

O caminho percorrido pelo cortejo

2 de Julho, Independência do Brasil na Bahia. Salvador, Bahia. Foto: Amanda Oliveira.

No dia 2 de Julho, o cortejo remonta a passagem do exército pelas ruas, fazendo, teoricamente, o mesmo percurso que teriam feito ao chegar à cidade, tomando os fortes e se aquartelando nos conventos, igrejas e quartéis.

O festejo sai do Largo da Lapinha, onde acontece queima de fogos, execução do Hino Nacional e hasteamento da bandeira. Há também a colocação de flores, pelas autoridades, no monumento ao General Labatut – militar francês que comandou o Exército Pacificador. Nesta caminhada, que passa pelo Convento da Soledade, em direção ao bairro do Santo Antônio Além do Carmo, é possível ver as casas decoradas nas cores das bandeiras do Brasil e do estado da Bahia. Isso também se deve a uma tradicional premiação para a melhor fachada, o que instiga ainda mais os moradores a participarem da festa.

Marisa Vianna conta que no percurso, as pessoas botam em suas casas coisas alusivas ao 2 de julho. “… eu percebo que este gesto é para estar partilhando desta comemoração”. A fotógrafa dá a dica da casa que ela já fotografou por alguns anos:

“Tem uma casa que acho que nem participa mais do concurso, por ficar decoradíssima, ali próxima à Igreja do Boqueirão (no Carmo). Coloca-se sempre um índio e uma índia, a Joana Angélica e a Maria Quitéria com pessoas vestidas representando a independência”, diz Marisa.

Depois, o cortejo segue parando em vários pontos até o Pelourinho. Ao chegar à Igreja de Nossa Senhora Rosário dos Pretos, há uma bonita homenagem. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos foi fundada no ano de 1685 e elevada à categoria de Ordem Terceira em 2 de julho de 1899. Uma data duplamente festiva. A homenagem começa com missa às 7h e, em seguida, com a chegada dos carros emblemáticos, colocam coroas de flores nas imagens do Caboclo e da Cabocla.

“Nós rosarianos pretos somos a única irmandade negra viva no mundo que faz parte da Ordem Terceira do Rosário. (…) Nós comemoramos essa elevação no dois de julho, e como baianos, brasileiros e soteropolitanos, nós homenageamos também os caboclos em saudação e respeito à independência”, explica Cosma Pereira de Miranda, secretária da Ordem Terceira.

Seguindo pelo Centro Histórico até o Palácio Rio Branco, os carros param retornando por volta das 14h. É neste momento que acontece uma Cerimônia Cívica no 2º Distrito Naval, no Comércio. Depois, o cortejo segue até o Campo Grande, onde acontece o hasteamento das bandeiras por autoridades, execução do Hino Nacional pelas bandas de música da Marinha, Exército e Aeronáutica, colocação de Coroas de Flores no Monumento ao 2 de Julho pelas autoridades presentes, acendimento da pira do Fogo Simbólico – que normalmente é de um grande atleta baiano – e execução do Hino ao 2 de Julho.

Finalizando o dia, das 17h30 às 21h30, acontece o Encontro de Filarmônicas vindas de Cachoeira, Saubara, Santo Amaro da Purificação, São Francisco do Conde, Candeias, Simões Filho entre outras.

Curiosidade

Foi em 2 de julho de 1998, data da Independência do Brasil na Bahia, na comunidade de Pirajá, que foi criado o Cortejo Afro, destaque entre vários grupos afros que participam do Carnaval de Salvador. Tendo nascido dentro dos limites de um terreiro de candomblé, o Ilê Axé Oyá, atesta toda a sua autenticidade e força da cultura negra sob a inspiração e orientação espiritual da sacerdotisa Mãe Santinha, uma das mais respeitadas Mães de Santo da Bahia.

A data da criação do bloco foi escolhida porque no bairro aconteceu a Batalha de Pirajá, considerada um dos principais choques bélicos da guerra pela Independência do Brasil na Bahia, sendo travada na área de Cabrito-Campinas-Pirajá. A principal batalha pela independência, em que os baianos venceram as forças do colonialismo português, em 1823, foi no Panteão de Pirajá, situado no Largo de Pirajá. Todo dia 1º de julho, o local recebe o Fogo Simbólico vindo do Recôncavo, representando as vilas revolucionárias instaladas na região. Os restos mortais de Pierre Labatut, general francês combatente da Batalha de Pirajá, encontram-se no panteão da principal praça do bairro.

A volta da Cabocla

Depois de ficarem dias em exposição na praça do Campo Grande, para contemplação e devoção popular, os carros com as figuras do Caboclo e da Cabocla fazem o percurso de volta no dia 05 de julho. As celebrações são encerradas com o cortejo dos carros emblemáticos para a Lapinha, com participação de Orquestras como a do Maestro Reginaldo de Xangô, fanfarras e grupos culturais.

Marisa Vianna diz já ter visto coisas bem interessantes enquanto o carro fica no Campo Grande. “As pessoas mais necessitadas, os moradores de rua podem ir ali pegar as frutas (…) e, mesmo assim, não vejo ninguém com sacolas, ou avançando no carro, pelo contrário”. Segundo ela, é ai que se reconhece a grandeza do símbolo ali representado, pois, como ela mesma disse:

“O alimento do caboclo alimenta o povo, isso para mim é muito forte“.

A guerra pela independência foi uma convergência de forças de todo o país sobre a qual poucas pessoas têm conhecimento. O intuito da festa é ser do povo para o povo, sendo uma das maiores de Salvador. Descobrir as histórias da primeira capital do Brasil é entender a formação do nosso próprio país.

Toda programação da celebração de 2023 você encontra neste link.

Por Fernanda Slama
Coordenadora de Conteúdo

Serviço

Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB)
Nº Piedade, Av. Joana Angélica, 43 – Nazaré, Salvador – BA, 40050-001.
Mais informações pelo telefone: (71) 3329-4423

Fontes:

Livro: História da Bahia, de Luís Henrique Dias Tavares, historiador, professor emérito da Universidade federal da Bahia (UFBA).

Livro: Irmandade do Rosário dos Pretos – Quatro séculos de Devoção, uma realização da Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora às Portas do Carmo Irmandade dos Homens Negros.

Leitura da entrevista “Uma guerra na Bahia”, feita pela jornalista Mariluce Moura ao historiador Luís Henrique Dias Tavares a respeito do livro: Independência do Brasil na Bahia, também do historiador.

Repositório Institucional da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro – neste link.

Geledés – Instituto da mulher negra – neste link

Notas:

  1. “Dizem* que o dia nasceu bonito, sem as chuvas de junho. O sol brilhou!” – O mesmo relato foi dado por diferentes pessoas na construção desta matéria. Tanto nos livros quanto nas entrevistas, quanto curiosos e amantes da Bahia contaram, à sua maneira, que o dia nasceu sem nuvens e o sol reinou no dia 2 de julho de 1823.
  2. O Te Deum** (A Ti, Deus!) é um hino da Liturgia das Horas, rezado nos domingos e dias solenes. Este hino foi composto por Santo Ambrósio e Santo Agostinho, no ano de 387, em Missão, por ocasião do batismo de Santo Agostinho.