Nós, Os Tincoãs

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Mateus Aleluia Foto: Reprodução

Uma quebra de paradigmas e delicada viagem sonora

A importância do grupo vocal que reafricanizou a Bahia, ressignificou ritmos e enalteceu os orixás

Lembro a primeira vez que vi Mateus Aleluia. Naquela noite, a Casa Preta Espaço de Cultura estava lotada. Era a gravação do DVD do Sambagolá Orquestra Popular, que mantém viva a memória de Batatinha, um dos grandes mestres do samba da Bahia. Mateus faria uma participação. Últimos preparativos do som e luz, muito falatório. Eis que lá de cima, todo vestido de branco, ele começa a descer as escadas. Uns sabiam quem ele era, outros não. Uns abriram passagem como um cortejo, outros não se mexeram. Eu fiquei ali esperando. Até então, quando queriam me explicar quem era ele, diziam: “Seu Aleluia é uma entidade viva”.

Chegou ao pátio, andou lentamente por entre os instrumentos posicionados já para a apresentação, foi em direção à porta principal, até que no primeiro degrau para subir, parou, olhou pra trás e voltou. Foi até um dos microfones, deu dois toques e, de olhos fechados, começou um belo e sonoro vocalize – eu me arrisco até a dizer que, em iorubá. Em um crescente e ininterrupto som, com uma voz que reverberava naquelas paredes históricas e que chegava macia aos ouvidos, pouco a pouco, de um a um, a casa ficou em seu mais completo silêncio. Só se ouvia o respirar. Ele permaneceu por mais alguns minutos ali e, já de olhos abertos, disse: “Acho que o microfone está bom. Podemos começar!”. Entre palmas e risos, a casa veio abaixo.

Mateus Aleluia, durante a comitiva de imprensa do lançamento do livro-memória “Nós, Os Tincoãs”. Foto: Evandro Veiga. Repórter Fotográfico Jornal Correio

Corto para dois anos depois, em novembro de 2018, durante a coletiva de imprensa do lançamento do livro-memória “Nós, Os Tincoãs”, um projeto multilinguagem com um show comemorativo e o relançamento dos três principais discos do grupo: Os Tincoãs (1973), O Africanto dos Tincoãs (1975) e Os Tincoãs (1977), lançados na fase áurea do grupo. Dessa entrevista, saiu uma chamada para os eventos da nossa agenda cultural, quase uma convocação para o show que aconteceria no Teatro Castro Alves, na noite de 6 de dezembro de 2017.

 

E que noite! Os remanescentes Mateus Aleluia e Badu cantaram no TCA ao lado de Ana Mametto, Bira Marques, Ganhadeiras de Itapuã, Margareth Menezes, Saulo e Terreiro Icimimo. Foi sensacional ouvir o som afro-barroco de Cachoeira, no Recôncavo Baiano – em atividade desde 1960 e com diferentes formações – tomar aquele palco com grandes recordações. Um pequeno resumo deste legado importante para o entendimento da influência dos sons africanos na musicalidade brasileira.

Depois com calma, lendo o livro, a cada texto e vendo as fotos, fui descobrindo que eu não sabia nada da obra d’Os Tincoãs. Ouvir as músicas já é incrível, mas contextualizadas, torna-se uma experiência extraordinária. Saber das influências “tincoânicas” no trabalho do Bixiga 70, Emicida, Criolo, Carlinhos Brown, Martinho da Vila, Letieres Leite e tantos outros é esclarecedor. Com tiragem de apenas 3.000 unidades, a publicação tem tudo para se tornar item de colecionador.

Crédito: Os Tincoãs em reprodução de capa de disco (fonte: reportagem de Mauro Ferreira para o G1).

A compilação de textos é uma imersão em uma obra sofisticada, enraizada e ainda assim atual. Uma musicalidade que repercutiu lá atrás no Tropicalismo, até chegar em Márcio Victor, vocalista da banda Psirico – que, por curiosidade, no livro conta ter sido ele quem apresentou Os Tincoãs ao rapper paulista Emicida. A “entidade viva” é mais que um músico e compositor. Representa, junto com o grupo, um marco cultural histórico. Suas composições são interpretadas por orquestras e bandas de música centenárias, até chegar ao carnaval de nossos dias.

“A reafricanização da Bahia começou com Os Tincoãs…”
Carlinhos Brown. Trecho retirado do livro: “Nós, Os Tincoãs”.

Mesmo assim, se você não souber do que se trata essa grandiosa obra, fique tranquilo! A busca por essas referências é coisa recente, impulsionada quando o Bixiga 70 gravou “Deixe a gira girar”. Fica aqui o desejo que os arranjos delicados, as vozes em perfeita harmonia, o violão percussivo e o atabaque harmônico dos Tincoãs invadam seus ouvidos. Você provavelmente vai sentir que eles sempre estiveram por perto.

Fernanda Slama
Coordenadora de Conteúdo

Preparamos uma lista com músicas perfeitas para esta experiência. Ouça agora!