Banner - Salvador Capital Afro – Rio Vermelho

Salvador Capital Afro – Rio Vermelho

Rio Vermelho preserva memória de única festa exclusiva para divindade do candomblé

Dentro do calendário da cidade, a Festa de Iemanjá não possui associação com santo católico.

O bairro do Rio Vermelho pode até ser conhecido pela infinidade de restaurantes, bares e espaços artísticos; no entanto, é o cheiro do dendê dos pontos de três famosas baianas de acarajé e a forte relação com a religiosidade de herança africana, por conta da Rainha do Mar, Iemanjá, que eternizaram a magia do bairro, que não escapa – como todo canto desta cidade – da memória ancestral que dá o tom de tudo que forma a identidade soteropolitana. Reunimos várias experiências para você vivenciar o Rio Vermelho, em um roteiro perfeito para fazer andando.

Alguns dos tabuleiros mais famosos de Salvador

Para adquirir energia para andar pelas referências, vamos começar pela comida. Os primeiros sentidos saciados são a visão e o olfato. A visão acompanha o bolo de massa branca de feijão-fradinho ganhando cor, consistência e exalando cheiro enquanto cozinha em um tacho com azeite de dendê fervente. Não há quem resista. Com poucas alterações na receita, como acrescentar o azeite na massa e cozinhar no vapor, o abará também é apreciado como o acarajé. Ambos podem ser servidos com pimenta, vatapá, caruru, camarão seco e salada.

E o Rio Vermelho concentra três especialistas em todas as iguarias de um tabuleiro tradicional, como passarinha, cocadas e bolinho de estudante. Assim, as recomendações são os pontos de Cira (no Largo da Mariquita), Dinha (Largo de Santana) e Regina (entre o Largo e a Casa de Iemanjá). São famílias que carregam a tradição há gerações do comércio de um dos símbolos culturais da cidade.

Jaciara de Jesus (1951-2020) foi outra baiana cujo acarajé ganhou a predileção de parte considerável dos moradores de Salvador. O primeiro ponto de Cira do Acarajé foi no bairro de Itapuã, que ainda existe. Depois foi aberta uma filial no Rio Vermelho. A baiana ganhou, pelo menos, quinze prêmios em edições de Veja Comer & Beber.

Atualmente, Elaine Assis, 40 anos, divide com o irmão a administração do negócio familiar e o cuidado espiritual herdado da mãe, a quituteira Lindinalva de Assis, a Dinha do Acarajé (1951-2008), que deu continuidade ao legado de Ubaldina de Assis, fundadora do ponto em 1944. A localização pode ser identificada como Largo de Sant’Ana ou Largo de Dinha (a denominação preferida de baianos e turistas). O acarajé preparado por Dinha foi um dos mais famosos de Salvador.

“A vida da gente sempre esteve ligada ao Rio Vermelho. Desde a minha infância tudo era aqui. Trabalho, lazer, estudos. E permanecemos fortalecendo esse laço”, contou Elaine, que ainda divide o tabuleiro com primas e sobrinhas.

Aos 70 anos, com ponto fixo no Rio Vermelho há pelo menos 40 anos, Regina dos Santos Conceição já não está na linha de frente da venda diária, mas monitora o tabuleiro e, de vez em quando, aparece para matar saudades de antigos fregueses.

“Sou muito querida no Rio Vermelho e fiz muitos amigos ao longo dos anos, que ficam cobrando minha presença. Aí, de vez em quando apareço para abraçar todo mundo, tirar fotos”, disse.

Em busca do verdadeiro sabor da nossa história

Lugares para comer bem são vários, mas vamos ficar com mais um que reúne elementos da culinária afro, com resgate de pratos da gastronomia regional comuns em feiras, ruas e mercados populares: Dona Mariquita. São valorizados produtos regionais com influências indígena e sertaneja também. A fundação ocorreu em 2006 e a decoração rústica, com muito barro e renda, deixa o local estiloso e aconchegante.

Moquecas, galinha ao molho pardo, feijoada de frutos do mar, carne-seca na moranga, arroz de hauçá, quiabada e a frigideira de maturi estão entre os pratos mais pedidos. A Veja Salvador elegeu o local como o melhor restaurante brasileiro da capital baiana por dois anos, sem contar a citação como referência de comida brasileira pelo New York Times.

Esculturas, pontos de visitação e para lindas fotos

Ícone forte no bairro, esculturas em homenagem à divindade que tem o mar como domínio estão por toda a extensão do Rio Vermelho. No Largo da Mariquita, a obra Sereia Yemanjá, do artista plástico Tatti Moreno, em fibra de vidro, está lá dourada e de frente para o mar.

Na balaustrada, no trecho em que ficam os barcos dos pescadores Colônia de Pesca Z1, em frente à Igreja de Santana, foi instalada a escultura Odoyá (2008), do artista visual Ray Vianna, feita em aço inox, com altura de 4,50 metros e largura de nove metros. Ele conta que começou a obra como um cavalo-marinho, mas imaginou uma barbatana e optou por uma estrutura vazada na linha da água.

Integrando a paisagem na orla do bairro, ao lado da quadra de esportes, na enseada do Rio Vermelho, está o Cetro da Ancestralidade (Opo Baba N’Laawa) – 2001. A escultura em bronze tem 10 metros de altura e é assinada pelo sacerdote-artista Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Mestre Didi (1917-2013). Pode ser definida com arte sacra.

Dos outros elementos que chamam a atenção, na entrada da Casa do Peso, mais conhecida como Casa de Iemanjá, foi instalada a escultura da Rainha do Mar por Manoel Bonfim em 1970. O pequeno imóvel aberto à visitação abriga esculturas, fotografias, pinturas e é zelado pelos pescadores. Visitantes costumam fazer orações, pedidos e deixam presentes. Da janela, a vista encanta e é mais uma atração do espaço.

Dia 2 de fevereiro, dia de festa no mar…

Com todos os pontos e referências apresentados, vamos falar da festa organizada pelos pescadores da Colônia de Pesca Z-1, que integra o conjunto de comemorações chamadas Festas de Verão, que antecedem o Carnaval na capital baiana. O início data da década de 1920, quando os pescadores resolveram oferecer um presente à Mãe d’Água diante de dias de escassez de peixes. A festa foi reconhecida como patrimônio imaterial de Salvador pela prefeitura em 2019. É a única celebração exclusiva de uma divindade do candomblé sem associação com santa ou santo da religião católica.

Segundo a jornalista e doutora em antropologia Cleidiana Ramos, a festa teve o protagonismo consolidado a partir dos anos 60:

“Essa festa está ligada à da padroeira do Rio Vermelho, Nossa Senhora Sant’Ana, que era bem mais discreta, e o auge era o Bando Anunciador, que foi considerado o Grito de Carnaval por muito tempo. Nos anos 70 foi retirada de forma oficial dessa data. A Paróquia do Rio Vermelho transferiu para o dia litúrgico em 26 de julho.”

Outra característica que vem sendo ampliada é a que o antropólogo Roberto Albergaria chamava de festival religioso. “No entorno da Casa do Peso, que é o centro da festa, têm sido vistas, nos últimos tempos, outras manifestações no escopo das religiões afro-brasileiras. Aumento de celebrações para caboclos: logo pela manhã na areia já começa a organização de tendas. Isso acontece também pela migração de centros de umbanda e terreiros de outros estados brasileiros”, explica a pesquisadora.

Para Cleidiana Ramos, outro ponto que pode ser destacado é a autonomia e independência do rito:

“É uma festa particular, feita pelos pescadores, uma comunidade tradicional que faz sua celebração, seu rito, independentemente do que acontece no entorno. Foi a única que manteve seu rito principal mesmo na pandemia”, explica.

Ao longo do dia da festa, é extensa a fila de devotos que não abrem mão de garantir que seu agrado à Rainha do Mar seja entregue junto com a oferenda da Colônia de Pesca em balaios disponibilizados para este fim, que ficam repletos de alfazema, rosas, espelhos, fitas, conchas, peixes, redes de pesca, barcos, sabonetes, perfumes, entre outros. Enquanto isso, os integrantes do terreiro de candomblé responsável pela preparação espiritual do presente principal para Iemanjá (oferenda dos pescadores da colônia) realizam, ainda no caramanchão instalado na frente da Casa do Peso, os ritos no presente, que sai da sede da colônia, no final da tarde, em cortejo embalado pelo Filhos de Gandhy para ser entregue em procissão marítima.

Há também quem opte por entregar pessoalmente à homenageada do dia na praia ou contratando pescadores que levam grupos aos locais mais afastados da praia. No dia, as cores predominantes por onde se anda na região são o azul e o branco. E paralelamente festas privadas acontecem em todo o bairro, em espaços culturais, hotéis e restaurantes. Pelas ruas desfilam grupos de samba de roda e ijexá, de capoeira e fanfarras.

Festa de identidade negra

No entanto, a única que prioriza e se destaca como festa de identidade negra é a ‘Yemanjá é Black’, produzida pelo ator e afrochef Jorge Whashington. Enquanto em todos os altares do Rio Vermelho no dia 2 de Fevereiro a imagem de Iemanjá tem a pele branca e o cabelo liso, lá a divindade negra tem a pele preta e o cabelo crespo, que também é estampada na camisa vestida pelos participantes do evento. Os requisitos são os mesmos para a escolha das atrações musicais, que são artistas negros. O prato principal é a feijoada, unanimidade no cardápio em outras festas do dia pelo bairro.

Capoeira

Encerrando o passeio, já perto do limite com o bairro de Ondina, a sede do Instituto Nzinga (@nzinga.salvador) preserva a prática da capoeira Angola e seus valores, além de conhecimentos sobre outros temas ligados à identidade negra e religiosidade. Além das rodas, são realizados seminários e outras atividades culturais. O nome é em homenagem à rainha de Matamba e Angola Nzinga Mbandi Ngola (1581-1663), que atuou na resistência à ocupação pelos portugueses em território africano. O grupo realiza seu trabalho para a comunidade do Alto da Sereia, área que é considerada remanescente de quilombo em Salvador. O grupo conta com núcleos, além da capital baiana, em São Paulo, Brasília, Moçambique, México e Alemanha. Saiba os endereços e horários dos treinos neste link.

Curiosidades

O nome Mariquita vem da palavra tupi mairaquiquiig, que significa “lugar que dá peixe miúdo”. O peixe miúdo em questão é a petitinga, que se encontrava em grande quantidade em certas épocas do ano nessa praia.

A origem do nome Rio Vermelho vem da palavra tupi camorogipe, que indica um rio de águas barrentas e piscosas. Conhecido como Rio das Tripas, hoje é um esgoto a céu aberto, o rio que batiza o bairro possui várias grafias: Camaragipe, Camarujipe, Camaragibe, etc. A que prevalece, no entanto, é Camarujipe, divulgada popularmente. E a voz do povo é a voz de Deus. Saiba mais neste link.

Referências culturais

PACIÊNCIA | Toponímia da Cidade com Cid Teixeira. Neste link.

Caminhos do Mar – Gal Costa. Neste link.

Yemanjá Rainha do Mar – Maria Bethânia. Neste link.

O Mar Serenou – Clara Nunes. Neste link.

Dia 2 de Fevereiro – Dorival Caymmi. Neste link.

Akará – Margareth Menezes. Neste link.

A Preta do Acarajé – Dorival Caymmi. Neste link.

Dossiê do Iphan sobre o ofício das baianas de acarajé. Neste link.