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Salvador Capital Afro no Centro Histórico

Nove pontos do Centro Histórico preservam religiosidade, memória e saber ancestral

Espaços destacam herança e valores culturais afrocentrados

O colorido intenso das fachadas dos casarões, a música de grupos de percussionistas ou capoeiristas que podem cruzar seu caminho a qualquer momento pelas ruas estreitas e largos e praças são impactos imediatos na chegada ao centro antigo da capital baiana entre o Pelourinho* e Santo Antônio Além do Carmo. No entanto, com um pouco mais de tempo, o interior de imóveis dos séculos XVII e XVIII oferece a possibilidade de acesso aos redutos de referenciais culturais negros que atraem gente de toda parte do mundo.

Reunimos aqui nove experiências para você vivenciar o Centro Histórico de Salvador, em um roteiro perfeito para fazer andando. O Pelourinho, desde 1985, é Patrimônio Histórico da Humanidade pela Unesco. O Santo Antônio Além do Carmo refere-se às portas da cidade do Salvador no início da sua formação. Esses dois territórios têm se destacado como destino de quem procura bares, hotéis, pousadas e restaurantes que chamam a atenção pela criatividade no cardápio, na decoração, além da vista encantadora para a Baía de Todos-os-Santos.

Você precisa conhecer este lugar

Logo no Largo Cruzeiro de São Francisco, a primeira organização civil negra no Brasil, criada em 1832 por 19 negros, ainda está lá reelaborando formas de combater problemas antigos como o racismo, a intolerância religiosa e a desigualdade social. Compras de cartas de alforria, auxílio mútuo, amparo a doentes e fomento ao empreendedorismo eram atividades da Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD) em sua origem.

“Realizamos um trabalho com as ganhadeiras de hoje, que vivem do turismo no Pelourinho, para ouvir suas demandas e buscar soluções, levamos a nossa história para as escolas e promovemos encontros entre comunidades quilombolas e urbanas para troca de experiências, além de abrigar estudantes universitários oriundos de outros locais em um imóvel da entidade”, contou a atual e primeira mulher a ocupar a presidência da entidade, Lígia Margarida de Jesus.

Nas paredes do imóvel, com móveis em madeira escura, cartazes exaltam a trajetória de homens e mulheres que se dedicaram à luta coletiva por direitos para a população negra. Ao chegar ao primeiro espaço de visitação, o primeiro elemento que chama a atenção é um cofre em madeira que só pode ser aberto pelo acionamento simultâneo de três chaves. Vindo do continente africano, não se sabe ao certo o país, o equipamento guardava o dinheiro utilizado para as ações dos pilares da instituição.

No mesmo andar, a reunião mensal da atual gestão ainda é realizada na mesma sala e nos mesmos móveis em que se reuniam os fundadores da entidade. No salão nobre, utilizado para eventos solenes, está a bandeira da SPD e o altar que a imagem de Nossa Senhora Imaculada Amparo dos Desvalidos divide com a de outros santos católicos e de divindades das religiões de matriz africana. O casarão conta também com salas de leitura e espaços para eventos diversos.

No último andar, em uma espécie de sótão, está a mais recente área liberada ao público. Aos mais sensíveis, o clima já começa a mudar na subida de acesso ao local. Pequenos cômodos sem janelas – para aumentar a proteção e segurança –, com cobertura em telha e com esteiras no chão, foram a residência de diversas famílias que precisavam de abrigo por qualquer necessidade. As alcovas receberam os nomes Tereza de Benguela, Dandara dos Palmares e da princesa africana Aqualtune. Se a visita for em uma segunda-feira, como mais uma atividade mantida desde a sua fundação, na entrada da entidade serve-se gratuitamente mingau ou sopa.

Cosméticos e saber ancestral

Outra iniciativa com a mesma premissa de cuidado e fomento da população negra está bem perto da sede da SPD, na Rua João de Deus, nº 8, a Botica Rhol. Apenas com o nome da rua, o visitante consegue chegar, por conta do cheiro oriundo do casarão com a fachada verde. A botica nasceu em 2014, a partir da Rede de Hortos de Plantas Medicinais e Litúrgicas, que tem a proposta de comercializar cosméticos que utilizam como matéria-prima plantas medicinais e aromáticas cultivadas em terreiros de candomblé, gerando renda para as comunidades.

São cremes, xampus, géis, sabonetes, xaropes e pomadas feitos de forma artesanal. Em dia de sorte, o visitante pode ser recebido pela idealizadora do projeto, a bióloga e doutora em Desenvolvimento do Meio Ambiente Sueli Conceição, que promove oficinas de autocuidado com o uso das plantas e cursos sobre o poder das ervas.

Gastronomia afrocentrada

Andando mais um pouco em direção ao Largo do Pelourinho funciona o melhor buffet de comida típica da capital baiana: 40 pratos e 10 sobremesas. O restaurante Escola Senac está instalado em um casarão colonial que também abriga o Museu da Gastronomia Baiana – com elementos formadores da culinária regional –, o restaurante-museu-escola e o bar-museu “Bahia Bar”, com pratos e bebidas de todo o território. Sem contar uma loja com livros sobre gastronomia brasileira, além da programação de cursos, que ensinam, por exemplo, a preparar acarajé e abará.

Se a preferência for pela busca de pratos com critérios como habilidade com os temperos, aliada ao conhecimento sobre as preferências dos orixás e respeito à religiosidade, os caminhos levam ao Santo Antônio Além do Carmo. É lá que agora funciona o restaurante Zanzibar – reduto da comida africana e suas releituras –, sob o comando da chef Ana Célia.

Fundado há 45 anos, o restaurante já teve sede nos bairros do Garcia e Federação. Ao entrar na cozinha do casarão, localizado ao lado da Igreja do Boqueirão, no processo de criação dos pratos, Ana volta ao período de aprendizado, ainda adolescente, com a tia Gertrudes – que trabalhava no antigo Hotel da Bahia e a colocava na cozinha desde os 13 anos de idade para ajudar a criar os irmãos –, e oferece alimento para o corpo e para a alma.

Pontes com o continente africano

Falando de locais que reforçam nossa relação com o continente africano, na capital baiana temos três: Casa de Angola, Casa da Nigéria e Casa do Benin. Apesar de não estar inserida no trecho Pelourinho-Santo Antônio Além do Carmo, a Casa de Angola não poderia ser a única representação de países africanos fora da nossa lista. A inauguração ocorreu em 5 de novembro de 1999, em um antigo Solar do Gravatá, imóvel do século XVIII e tombado pelo Iphan em 1974.

O objetivo foi consolidar os laços culturais entre os países e permitir aos soteropolitanos o conhecimento sobre a cultura e os costumes angolanos. Os cerca de 500 visitantes mensais encontram na entrada o busto de António Agostinho Neto Kilamba (primeiro presidente de Angola e secretário-geral do Movimento Popular de Libertação do país) e a escultura em madeira do Pensador Angolano (de origem tchokwe, é um símbolo da cultura nacional) entre a bandeira do país e a do Brasil.

O museu é formado por peças que representam o poder político, a religiosidade, os ritos de iniciação, além de utensílios domésticos, artesanato e obras de arte. Na biblioteca, aberta para consulta, são 20 mil títulos, entre livros, revistas, teses e dissertações de temas relacionados ao acervo de periódicos, revistas, documentos e fotografias.

“A experiência que tenho é que, quanto mais as pessoas descobrem a contribuição do continente africano para o mundo e nossas ligações, o orgulho e o interesse por elementos por essa conexão aumentam”, conta o diretor da Casa de Angola Bahia, Benjamim Sabby.

Separadas apenas pela ladeira do Largo do Pelourinho estão as casas da Nigéria e a do Benin. Mais nova das três, a Casa da Nigéria* foi inaugurada em 2008, na rua Alfredo de Brito. O local abriga esculturas, tecidos e quadros de artistas nigerianos. Além de atrair turistas, o local é ponto de encontro para nigerianos que residem na capital baiana.

A Casa do Benin é a única que não é mantida pelo governo do país africano. Com projeto da arquiteta Lina Bo Bardi, a abertura foi em 1988. São três pavimentos que abrigam: espaço da exposição permanente, cozinha e área para eventos, com sala para mostras temporárias e um terraço – local mais procurado por estudiosos de arquitetura – com vista para a subida do Largo do Pelourinho e a região do Carmo. Outro destaque da estrutura é a construção da réplica de uma Tatassomba (edificação típica do Benin) desenvolvida pela arquiteta Lina Bo Bardi, feita de barro e com teto de palha, no térreo.

O acervo permanente tem mais de 200 peças do Golfo do Benin, trazidas pelo fotógrafo francês Pierre Verger, além de doações do país de origem, como mealheiros, cabaças, brinquedos, jogos de tabuleiro, representações de voduns (nome das divindades no candomblé de nação jeje), tronos, máscaras, colares, armas, contas, a maquete do cortejo real do Benin (peça que mais faz sucesso entre os visitantes). O conjunto também conta com quatro obras confeccionadas por artistas afro-brasileiros: dois orixás (Oxalá e Iemanjá), feitos pelo artista plástico Tati Moreno; o cetro de lança Opô Baba N’lawa, de Mestre Didi; e um Exu na entrada do imóvel, feita em ferro por Agnaldo Silva da Costa. Sem contar os tecidos coloridos que decoram o local. Os da lateral da sala de exposição são trazidos do Benin, e as peças no teto são da artista plástica e designer Goya Lopes.

Festa de Santa Bárbara

Saindo da Casa do Benin, no final da rua à esquerda está instalado o antigo Mercado da Rua da Vala, inaugurado em 1874, e na Baixa dos Sapateiros encontra-se o atual Mercado de Santa Bárbara, que fica em festa no dia 4 de dezembro. Trata-se de um dia de celebração no Centro da Cidade do Salvador desde 1641, quando foi instituído o Morgado de Santa Bárbara.

Na década de 80 do século XX, as celebrações e a própria imagem de Santa Bárbara passaram a sediar-se na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho. Seus comerciantes oferecem no dia da festa um caruru para quem visitar o espaço, que conta com uma capela em homenagem à divindade. O imóvel abriga bares, restaurantes e um estabelecimento de serviços de viagem.

Religiosidade

Importante nos Festejos de Santa Bárbara e de onde parte a procissão, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos é datada do século XVIII e é sede da primeira irmandade para negros de Salvador, a Irmandade de N.Sra. do Rosário dos Homens Pretos do Pelourinho ou de N.Sra. do Rosário das Portas do Carmo.

A igreja foi construída pelos irmãos, ao longo de quase um século. Nossa Senhora do Rosário é a padroeira, mas são cultuados santos negros, como São Benedito e Santo Antônio da Categeró. Há também um assentamento dedicado aos ancestrais que é protegido pela memória da Escrava Anastácia. As missas têm elementos afro-brasileiros, como o uso de atabaques. A mais frequentada acontece às terças-feiras, às 18h. O templo é o preferido por terreiros de candomblé que ainda mantêm proximidade com ritos católicos em datas importantes.

Em seu início, a mesa diretora só aceitava pessoas que tivessem nascido em Angola. Aproximando ainda mais a relação, em 2018, o Brasil torna-se o terceiro país, depois de Argentina e Estados Unidos, a receber a imagem de Nossa Senhora da Conceição da Muxima (Mama Muxima), padroeira de Angola. A santa foi trazida por uma delegação do país de origem e recebida com festa na capital baiana, que celebra o dia da santa em setembro com missa e procissão.

Já a festa da padroeira da irmandade, Nossa Senhora do Rosário, acontece em outubro, dia 7, e, após o término dos ritos, os irmãos oferecem aos convidados um bacalhau preparado com toucinho.

Vídeo:
Irmandade do Rosário dos Homens Pretos – Doc neste link.

Nota: o Pelourinho* teve a origem do nome no equipamento utilizado para torturar negros escravizados.
Nota: a Casa da Nigéria* permanece fechada depois da pandemia da Covid-19. Entre em contato antes de organizar sua visita. Telefone: (71) 3103-3103.