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Salvador Capital Afro em Itapuã

Itapuã preserva memória para perpetuar identidade cultural

Manifestações tradicionais da comunidade são utilizadas para fortalecer costumes e garantir continuidade

Ainda com fluxo intenso de veículos, comércio agitado, o vaivém da feira e do mercado do peixe, o bairro de Itapuã – que tem como forte referência o fato de abrigar domínios de divindades africanas, como o mar de Iemanjá e a Lagoa do Abaeté, onde é realizado o Presente de Oxum – ainda preserva a aura que construiu a fama do bairro pelo mundo. O pôr do sol do mirante, a puxada de rede coletiva no início da manhã ou o pescador solitário refazendo a trama do seu equipamento, o grupo de moradores que joga dominó à beira-mar, o bando anunciador, o samba da Lavagem Nativa e os passos leves e altivos do corpo de baile mirim do bloco afro Malê Debalê são imagens que garantem a eternidade desse status.

Escultura e bustos pelo caminho

A gente começa o trajeto pela Sereia de Itapuã, que fica na entrada do bairro atuando como anfitriã, em frente ao início da avenida que homenageia o poeta e músico Dorival Caymmi. A escultura feita de ferro é do artista plástico Mário Cravo Júnior e foi construída em 1958. Ao lado do monumento, um mirante garante a melhor foto com uma paisagem deslumbrante de cenário a qualquer hora do dia, em especial no fim de tarde.

Um pouco mais à frente, o assunto volta a ser Dorival Caymmi. Além das suas composições, que deixaram Itapuã ainda mais mágica e despertam o desejo de turistas de diversas partes do mundo para conhecer o universo ao qual, até hoje, se é transportado ao ouvir uma das declarações de amor em formato de canções, ele nomeia a principal praça de Itapuã e tem dois monumentos.

No calçadão foi instalada a estátua feita em bronze pelo artista Tatti Moreno, que é a preferida pelos turistas para fazer foto, pois Dorival está em pé, com o violão. O busto em bronze é criação da artista plástica Márcia Magno e foi instalado na praça que também leva o nome dele, ao lado da Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Itapuã, a principal do bairro, que começou como uma capela de pescadores, em 1625, ganhando o título de paróquia em 1815.

Festa popular de Itapuã

É no adro da Igreja de Nossa Senhora da Conceição que acontece a Lavagem de Itapuã, que, por sua vez, está relacionada a mais dois eventos que mobilizam o bairro por conta da festa realizada na última quinta-feira antes do início do Carnaval.

A comemoração começa com o desfile do Bando Anunciador. Por volta das 2h, após oração puxada por Ronilda Araújo, 75 anos, moradores saem pelas principais ruas do bairro embalados por instrumentos musicais de corda, sopro e percussão, chamando os vizinhos para a Lavagem Nativa, que sempre foi realizada por pescadores e lavadeiras. A tradição é antiga, mas foi resgatada por dona Ronilda em 2004, quando a lavagem completou 100 anos. “Essa alegria vem do nosso povo negro, que construiu esse bairro e é responsável por todas as manifestações culturais que realizamos até hoje”, diz ela, que também coordena o terno de reis Rancho de Itapuã e o Desfile da Primavera.

Na rua Alto da Cacimba, o cortejo animado é recebido por Antônio Carlos Pedreira, 77 anos, que, com ajuda de vizinhos, monta uma mesa com comidas e bebidas para os integrantes do cortejo.

“Meu trabalho exigia que eu não tivesse uma residência fixa, que era o que mais queria. Como isso foi possível ao chegar aqui, sinto que preciso agradecer a Nossa Senhora da Conceição todos os anos por ter conseguido realizar o sonho de ter uma residência fixa”, conta Antônio Carlos.

Essa ação atualmente atrai público de diversos bairros, em clima de confraternização e festa. Também conhecida como Primeira Lavagem, ela acontece por volta das 5h, na volta do grupo para a igreja, com muita água de cheiro, alfazema, flores, areia branca e folhas de pitanga. Tudo termina em um grande samba de roda com participação das Ganhadeiras de Itapuã em seus trajes coloridos de chita e muito samba no pé.

As Ganhadeiras, grupo criado em 2004, representam as negras de ganho do período colonial e atuam no fortalecimento da mulher e na preservação da cultura ancestral. São 20 mulheres que cantam a vida da comunidade e encantam em apresentações pelo mundo. Em 2015, venceu o 26º Prêmio da Música Brasileira nas categorias Grupo Regional e Álbum de Música Regional, além de melhor produção na categoria Show do Prêmio Caymmi de Música. Conheça o museu virtual Casa de Ganho neste link.

Depois do samba é servido o café da manhã, na frente da casa de Eunice Gomes (dona Niçu), que iniciou a tradição que é mantida por seus filhos desde a sua morte, em 2005. “Itapuã é diferente, pois as pessoas se identificam com o bairro. Então não existe a possibilidade de não fazer. A brisa do Abaeté e o mar nos conduzem, e quando a gente percebe, já está envolvido”, declara Celso Di’Niçu, que também é diretor do bloco afro Malê Debalê e gestor da Casa da Música, que funciona no Abaeté com atividades de formação.

No mesmo dia, às 10h, o cortejo das baianas e outros grupos culturais, como os Filhos de Gandhy, saem da praia vizinha de Placaford, no bairro de Piatã, até o templo católico para a realização da segunda lavagem. O bairro ainda conta com a Festa da Baleia (a pesca da baleia foi uma das principais atividades econômicas de Itapuã, do século 17 até o início do século 20); a Missa do Anzol; o Presente de Oxum, que acontece em outubro na Lagoa do Abaeté; o Carnaval de Itapuã; e a antiga Procissão de São Tomé.

Alegria e o empoderamento por meio da arte

Festa com valorização cultural e preocupação com a continuidade é também o que sabe fazer o bloco afro Malê Debalê (nome em homenagem à Revolta dos Malês, levante de negros muçulmanos ocorrida em 1835 em Salvador), que tem sede no Parque Metropolitano do Abaeté. A agremiação, fundada em 23 de março de 1979, é conhecida por ter o maior balé afro do mundo e mantém um grupo de crianças que aprendem desde cedo a importância de perpetuar o legado com raízes na herança cultural negra.

A alegria e o empoderamento estão estampados na expressão das 20 crianças entre 6 e 12 anos, que, aos sábados, vão para a sede do bloco para receber mais uma dose de fortalecimento de identidade. A meta do grupo é unânime: ser rainha ou rei Malê. A iniciativa é de Agnaldo Fonseca, coordenador do departamento de dança do Malê Debalê, formado por 15 alas, e criador do grupo Malezinho, em 2019. As aulas são de percussão, dança e canto, além do embasamento teórico sobre cultura afro e cidadania. “Hoje o Malê está mais voltado para o amanhã, focando na formação dos novos artistas e no caminho de fortalecer e educar para a vida. É um compromisso social e ancestral. A dança forma e transforma, e vejo isso no desenvolvimento dessas crianças”, conta. Os ensaios do bloco começam no segundo semestre, entre agosto e setembro. A programação está disponível no perfil @maledebaleoficial.

Legado e símbolo do combate à Intolerância Religiosa

Por falar em reis e rainhas, a primeira do Malê Debalê é a ialorixá Jaciara Ribeiro dos Santos, atual líder religiosa do Ilê Axé Abassá de Ogum. A história do terreiro é referência e motivação da criação do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. O dia 21 de janeiro é marcado pela morte de Gildásia dos Santos e Santos, Mãe Gilda, que era a sacerdotisa do Abassá de Ogum e mãe biológica de Jaciara. Em 1999, ela teve uma foto sua publicada pela Folha Universal em um texto que acusava religiões de matriz africana de charlatanismo. Ela teve a casa e o terreiro invadidos, o que causou complicações à sua saúde, que se agravaram até a sua morte, em 2000.

Mãe Jaciara atua em diversos projetos sociais com mulheres do bairro e cuida do busto de Mãe Gilda, que foi instalado no Parque Metropolitano do Abaeté, antigo reduto das lavadeiras de ganho – até a década de 1990 – e espaço sagrado para as religiões de matrizes africanas.

“É o papel de cada terreiro fortalecer a sua comunidade, e é o que fazemos aqui em Itapuã. Quando eu faço um ritual pedindo proteção e energias boas no terreiro, eu estou dividindo isso com o lugar onde o terreiro se encontra e com as pessoas desse território. O terreiro tem uma delimitação física, mas a atuação é abrangente. Não tem como eu cultuar Oxum aqui e não cultuar Oxum na Lagoa do Abaeté”, conta

Referências musicais

Itapoan – Dorival Caymmi. Neste link.

Saudade de Itapoan – Dorival Caymmi. Neste link.

A lenda do Abaeté – Dorival Caymmi. Neste link.

Ganhadeiras de Itapuã. Neste link CD completo. E neste link TV UFBA.DOC.