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Protagonismo negro leva lavagem ao status de ato oficial no Bonfim

Ato de lavar o templo tem ligação com religiosidade africana e é auge da programação

A Lavagem do Bonfim é a maior festa popular da capital baiana depois do Carnaval. E, claro, a influência cultural negra é um aspecto importante para a manifestação ter chegado a esse patamar. Para muitos baianos e visitantes, a Lavagem, que conta com público de, pelo menos, um milhão de participantes, é a própria Festa do Bonfim ‘oficial’, que acontece no domingo seguinte ao ato, com missa e procissão. E esse rito tem mais visibilidade que os ritos católicos, e é assim porque foi proibido de acontecer dentro da igreja.

 

A prática portuguesa de preparar as igrejas para as festas, a comemoração pela libertação da cidade após a saída dos portugueses em 2 de julho de 1823 e a imitação do rito das Águas de Oxalá realizados nos terreiros de candomblé são versões para o início da Lavagem. Nas Águas de Oxalá, sacerdotisas e sacerdotisas do candomblé carregam quartinhas. O Senhor do Bonfim é associado a Oxalá, em sua versão mais velha: Oxalufã. O rito está ligado ao itan (forma narrativa da filosofia e religiões de povos de língua iorubá), em que Oxalá, após uma prisão injusta, recebe homenagens, cujo primeiro passo é ser banhado por toda a comunidade do reino de Xangô, seu filho.

“Com a devoção crescente ao Senhor do Bonfim, as elites econômicas da capital baiana seguiam para a Península de Itapagipe a partir de dezembro para passar o verão. Em uma sociedade escravocrata dá para imaginar a quem cabia lavar o templo, ou seja, possivelmente, escravos, libertos, mais pobres”, detalha a jornalista e doutora em antropologia Cleidiana Ramos, autora da tese Festa de Verão em Salvador – Um estudo antropológico a partir do acervo documental do jornal A Tarde.

Por meio de decreto eclesiástico, em 1773, a Festa do Bonfim, que acontecia a cada ano em datas diferentes, passou a ser realizada no segundo domingo após a Festa da Epifania, que a Igreja Católica celebra em 6 de janeiro. Também conhecido como Dia dos Reis, a Epifania é a “Revelação de Jesus” ao mundo. Assim, a Lavagem ocorre na quinta-feira anterior ao dia solene da festa. Mas, de fato, ela foi proibida em 1889, pelo arcebispo dom Luís Antônio dos Santos.

Lavagem do Bonfim Bonfim 2020. Salvador Bahia Foto Amanda Oliveira.

 

“Parte da elite baiana chamava de excessos o que ocorria dentro das igrejas. Mas o rito foi mantido na parte externa, ganhando projeção especialmente nas décadas iniciais do século XX, quando se passou a fazer um cortejo organizado a partir da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, que totaliza oito quilômetros. Como diz o professor e doutor em antropologia Ordep Serra, o Bonfim é uma das muitas invocações a Jesus Crucificado, só que não há penitência ou tristeza, mas alegria”, explica a pesquisadora Cleidiana Ramos.

E assim acontece ao longo dos anos, uma multidão amanhece na Basílica Santuário Nossa Senhora da Conceição da Praia para a cerimônia inter-religiosa que antecede o cortejo formado por uma multidão diversa de católicos (na caminhada “Lavagem de Corpo e Alma”), religiosos do candomblé, políticos, além de quem trabalha na festa ou foi em busca de diversão. Após a chegada do cortejo à Basílica Santuário Nosso Senhor do Bonfim, acontece a bênção com a imagem do Senhor do Bonfim, em seguida a lavagem do adro do templo.

A Festa do Bonfim na Basílica Santuário do Senhor do Bonfim começa uma semana antes, com o hasteamento da bandeira e um novenário. No sétimo dia da programação, a imagem peregrina do Senhor do Bonfim sai da Basílica Santuário Nosso Senhor Bom Jesus do Bonfim até o píer da Ponta do Humaitá, de onde segue, em procissão marítima, até a Igreja de Nossa Senhora da Penha, logo após, em direção ao Porto da Barra, retornando para o Cais da Praça Cairu.

O último dia da novena acontece no sábado que antecede o dia festivo, que começa com alvorada e segue com missas e a Procissão dos Três Pedidos, que tem a Igreja Nossa Senhora dos Mares (Largo dos Mares) como ponto de partida. Ao chegar à Colina Sagrada, devotos dão três voltas em torno do templo, fazendo três pedidos. O momento é encerrado com a bênção do Santíssimo Sacramento e queima de fogos de artifício.

Cinco pontos importantes da festa

Lavagem do Bonfim Bonfim 2020. Salvador Bahia Foto Amanda Oliveira.

1.A Lavagem é um rito da festa

Muita gente pensa que a Festa do Bonfim se resume à lavagem do adro da Igreja. Mas ela é apenas um dos ritos da extensa programação da festa em homenagem a uma das invocações a Jesus Crucificado. O dia solene da festa é o domingo logo após a quinta-feira da Lavagem. A programação começa com uma missa na Basílica do Bonfim pela manhã. À tarde tem procissão com saída dos Mares e, após o retorno desta, a Procissão dos Três Pedidos, quando as pessoas apresentam seus desejos enquanto dão três voltas no entorno da igreja.

2. Epifania é referência para a data da festa

Por um decreto eclesiástico, a Festa do Bonfim, que acontecia a cada ano em datas diferentes, passou a ser realizada no segundo domingo após a Festa da Epifania, que a Igreja Católica celebra em 6 de janeiro. Também conhecido como Dia dos Reis, a Epifania é a “Revelação de Jesus” ao mundo. Os reis magos representam cada continente no então mundo conhecido e, por isso, nesta data festeja-se o Menino Jesus como o salvador de “todos os povos”. Assim, a Lavagem ocorre na quinta-feira anterior ao dia solene da festa.

3. Hino oficial do Bonfim é desconhecido para boa parte dos devotos

“Glória a ti nesse dia de glória/ glória a ti, redentor que há cem anos/ Nossos pais conduzistes à vitória pelos mares e campos baianos”. O hino foi composto por Arthur de Salles e João Antônio Wanderley. A canção foi composta para celebrar o centenário da Independência da Bahia, em 1923, mas não foi estabelecida oficialmente. A letra, inclusive, como destacava o historiador Cid Teixeira, tem passagens bélicas como “sentinela avançada”, “guarda imortal da Bahia”, dentre outras. Com a versão na voz de Caetano para o disco Tropicalia ou Panis et Circencis, o hino ganhou um arranjo que o tornou extremamente popular. Além disso, rádios baianas passaram a tocá-lo ao meio-dia em contraponto à Ave Maria, veiculada às 18 horas. Para torná-lo ainda mais marcante, o Hino do Senhor do Bonfim, nesta nova versão, passou a ser, nas décadas de 1970 e 1980, a canção de encerramento do Carnaval de Salvador e das micaretas realizadas pelo interior da Bahia. O hino oficial veiculado na missa solene do Bonfim é desconhecido para a maioria dos devotos.

4. Lavagem foi proibida em 1889

Há muitas versões para o início da Lavagem do Bonfim, mas o hábito de lavar as igrejas antes das festas de santos era comum no catolicismo português. Com a devoção crescente ao Senhor do Bonfim, as elites econômicas da capital baiana seguiam para a Península de Itapagipe a partir de dezembro para passar o verão. A festa incluía ainda as celebrações para Nossa Senhora da Guia e São Gonçalo. Em uma sociedade escravocrata dá para imaginar a quem cabia lavar o tempo, ou seja, possivelmente, escravos, libertos, mas pobres. Lavar qualquer coisa, portanto, devia ser um convite à irreverência, e isso logo começou a irritar especialmente as autoridades eclesiásticas. Em 1889 o então titular da Arquidiocese de Salvador, dom Luís Antônio dos Santos, proibiu a lavagem do interior de todas as igrejas da cidade. Mas, ao que parece, o povo não desistiu.

5. Trios elétricos participavam da Lavagem

Quando ganhou o protagonismo do Carnaval de Salvador, a maior festa da cidade, os trios elétricos também alcançaram as festas de largo. No Bonfim, os trios começaram a participar da programação da Lavagem em meados da década de 1970. O arcebispo de Salvador no período, o cardeal dom Lucas Moreira Neves, foi um dos críticos à presença dos trios. Os trios foram proibidos na Lavagem em 1998. Para atender o público que acompanhava os trios em edições especiais de blocos foi criado o “Farol Folia”. O evento passou a acontecer, anualmente, no sábado seguinte à Lavagem, na Barra. Após alguns anos foi transferido para Armação, depois para a Boca do Rio, até ser extinto.

Hino popular ao Senhor do Bonfim

Arthur de Salles e João Antônio Wanderley

Glória a Ti neste dia de glória
Glória a Ti, redentor, que há cem anos
Nossos pais conduziste à vitória
Pelos mares e campos baianos
Dessa sagrada colina
Mansão da misericórdia
Dai-nos a graça divina
Da justiça e da concórdia
Dai-nos a graça divina
Da justiça e da concórdia
Glória a Ti nessa altura sagrada
És o eterno farol, és o guia
És, Senhor, sentinela avançada
És a guarda imortal da Bahia
Dessa sagrada colina
Mansão da misericórdia
Dai-nos a graça divina
Da justiça e da concórdia
Dai-nos a graça divina
Da justiça e da concórdia
Aos Teus pés, que nos deste o direito
Aos Teus pés, que nos deste a verdade
Canta e exulta num férvido preito
A alma em festa da Tua cidade
Dessa sagrada colina
Mansão da misericórdia
Dai-nos a graça divina
Da justiça e da concórdia
Dai-nos a graça divina
Da justiça e da concórdia

Hino cívico ao Nosso Senhor do Bonfim

Dr. Egas Moniz Barreto de Aragão (letra)
Remígio Domenec (música)

À sombra do teu madeiro
Sob um céu primaveril
Nasce o povo brasileiro
Cresce pujante o Brasil
De um dia sermos vencidos
Não nos assalta o temor
Ao teu lado, sempre unidos
Somos teu povo, Senhor!
Salva, protege, alumia
Pelo sinal desta cruz
O coração da Bahia
Que aos teus pés o amor conduz
Volve os teus olhos divinos
Aos nossos males – oh Sim!
Ouve o clamor destes hinos,
Nosso Senhor do Bonfim
Abraço os sagrados braços
Desceste do teu altar
Para guiar nossos passos
E nossos ferros quebrar!
Da Bahia eterno amigo
Passando entre nós, Jesus
Levas nossa alma contigo
No grande abraço de luz
Do mundo na tempestade
Seja o seu nome ufanal
O escudo da liberdade
A espada do ideal
Na peleja mais renhida
Ninguém nos há de vencer
Quem teme a Deus nesta vida
Nada mais pode temer

Para saber mais:

Alma e festa de uma cidade – Devoção e construção na Colina do Bonfim – Salvador: Edufba, 2009
Autora: Mariely Santana
Águas do Rei, Vozes, 1995

Rumores de festa, o sagrado e o profano na Bahia, 2ª edição, Salvador: Edufba, 2009
Autor: Ordep Serra

Hino neste link.

Senhor do Bonfim – Dalva de Oliveira neste link.

Meu pai Oxalá – Toquinho neste link.

Opachorô – Gilberto Gil neste link.

Emoriô – Gilberto Gil neste link.

Lavagem do Bonfim – Riachão neste link.