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Entrevista: Pra preto ler

Pra Preto Ler

Bárbara Borges e Francinai Gomes falam sobre “Saber de Mim: autoconhecimento em escrevivências negras”, seu primeiro livro, e sobre a importância de Salvador na construção da obra.

Psicólogas negras, fundadoras do perfil @prapretoler e @prapretopsi, escritoras potentes e transformadoras sociais. Essas são algumas das várias qualidades de Bárbara Borges e Francinai Gomes, que lançaram o livro “Saber de Mim: autoconhecimento em escrevivências negras” e escolheram a cidade histórica que é Salvador, para produzir, escrever e lançar esse projeto.

Nascidas e crescidas no interior da Bahia, Bárbara e Francinai, vieram para Salvador com grandes expectativas. Elas se conheceram na Universidade Federal da Bahia, onde se graduaram em Psicologia e se especializaram na área. Bárbara se tornou pesquisadora de efeitos psicossociais do racismo e saúde mental da população negra, e Francinai, na área de adoecimento mental da população negra e carcerária. As duas se uniram e se inspiraram nas vivências da população negra de Salvador para fundar o Pra Preto Psi, um projeto para pessoas negras em busca de psicoterapia e profissionais que exercem clínica racializada, e o Pra Preto Ler, um perfil no Instagram onde unem o conhecimento cientifico às experiências cotidianas em prol da saúde mental, para estimular o autoconhecimento.

 

Créditos: Lu Helena

O livro “Saber de mim: autoconhecimento em escrevivências negras”, é a junção desses projetos, sendo uma coletânea de textos que trazem reflexões profundas sobre as questões psicoemocionais da população negra, onde o racismo tem relação direta na construção da subjetividade de cada indivíduo. Assim, elas trazem o autoconhecimento como a principal ferramenta para enfrentar os automatismos de ódio consequentes desse sistema. A obra traz a importância de combater a alienação racial para sermos protagonistas das nossas histórias e olhar com referência e valorização para nossa comunidade.

 

Créditos: Lu Helena

Fizemos uma entrevista com a Barbara Borges e Francinai Gomes para entender o processo de produção e a importância da cidade de Salvador na construção da primeira obra da “Pra Preto Ler”

Confira abaixo:

Salvador Capital Afro: De que forma Salvador uniu vocês?

Pra Preto Ler: Nós sempre estivemos conectadas ao território de várias formas. A experiência de ter nascido e vivido no interior da Bahia boa parte da vida, com certeza, moldou e molda cotidianamente a forma como vemos o mundo e a nós mesmas. Quando viemos morar em Salvador, as expectativas eram muitas em torno do que poderíamos viver no território. Tanto no campo do trabalho, quanto e principalmente na dimensão pessoal, acreditávamos que este era o lugar que movimentaria nossas vidas, e de fato aconteceu.

 Como surgiu a ideia de escrever esse livro e qual a maior inspiração? 

 Pensamos que a principal inspiração foi mesmo a nossa comunidade. Estar na cidade, ver a movimentação das pessoas, as escolhas cotidianas, os lugares de poder, a complexidade dos afetos, tudo isso sempre nos causou uma enxurrada de reflexões, muitas ainda sem respostas, mas com um grande potencial transformador. Sempre sonhamos, até antes de nos conhecermos, em parir nossas ideias pro mundo, e esse foi um dos caminhos que encontramos de nos aproximar da nossa comunidade e olhá-la, assim como ela nos olha cotidianamente, como uma espécie de propósito mesmo. Como diz nossa grande inspiração, Neusa Santos “uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si”, e foi nisso que pensávamos enquanto o livro estava sendo escrito, na importância desse despertar de si mesmo. 

 Como vocês enxergam a questão da saúde mental da população negra na cidade de Salvador, visto que é a cidade mais negra fora de África? 

 Salvador é um território marcado por contradições, típicas das disputas de poder no espaço desde a sua fundação. E talvez esta seja a maior delas, porque embora seja uma cidade de maioria negra, historicamente isso não se converteu em poder econômico, político, estético e muito menos cultural. A cidade, dominada pelo poder oligárquico e colonial da branquitude, produz cotidianamente as condições de negar a raça para afirmar o mito da democracia racial, sendo a miscigenação o grande pilar. Enquanto isso, a maioria negra segue sendo esmagada por políticas públicas desastrosas junto à precariedade dos serviços de saúde, educação e justiça. A negação das necessidades de pessoas negras é marcante e reconhecemos que isto gera sofrimento, afetando a saúde mental. 

O livro “Saber de mim: autoconhecimento em escrevivências negras” tem como um dos pontos de partida a discussão sobre os prejuízos causados pela alienação racial. Vocês acham que a população negra de Salvador tem avançado nesse sentido? 

 As consequências do processo de alienação racial no Brasil constroem um sistema de terror, principalmente simbólico, que se aprimora cotidianamente. Não dá pra falar em autoconhecimento sem pensar nas condições que dão sustentação a esse processo, então falamos em acesso à vida, a possibilidade de ter um emprego, uma casa, alimentação, lazer, tudo isso oferece sustentação a um processo de autoconhecimento verdadeiro e saudável. 

Nos últimos anos a pandemia existiu como um catalisador da pobreza, em Salvador todos comentam sobre como a fome e os dados mostram como a violência cresceu exponencialmente. Neste caso, lembro de quando Conceição Evaristo diz que “não morrer, nem sempre é viver”, e ser atravessado por esse território adoecido com certeza provoca um sofrimento compartilhado. Ademais, também vemos a população de Salvador se curando, quem pode, tem se aproximado das artes como uma ferramenta de cura.

 Vocês dão uma continuidade brilhante ao trabalho de Neusa Santos, Frantz Fanon, Conceição Evaristo e outros grandes nomes que debatem a questão da saúde mental da população negra. Pensando nisso, para vocês, qual a importância da população negra cuidar da saúde mental para modificar a sua realidade e da sua comunidade?

 Digamos que não é possível causar mudanças estruturais na realidade da comunidade negra e do Brasil sem o autoconhecimento como ferramenta. Quando Fanon nos diz que os oprimidos sempre acreditarão no pior sobre si mesmos, ele nos convoca para pensar não apenas o autoconhecimento, como também a construção das opressões como um sistema que embarga a possibilidade de saber de si.  É muito importante compreender que o sofrimento psíquico não está apenas relacionado a este adoecimento que nos acomete psiquicamente, o ser biopsicossocial é atravessado por diversas instâncias que trabalham juntas para fortalecer o isolamento e a desesperança, elementos centrais no genocídio da população negra. É urgente que estejamos atentos a todas essas nuances, enquanto ser individual, mas principalmente enquanto comunidade.

 

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