Banner - De origem exclusivamente negra, a Festa de Iemanjá completa 100 anos

De origem exclusivamente negra, a Festa de Iemanjá completa 100 anos

Divindade afro-brasileira é a única a ter festejos sem associação com o catolicismo

Tendo o mar e seu entorno como templo, soteropolitanos, turistas e pescadores da Colônia de Pesca Z1, no bairro do Rio Vermelho, repetem pela centésima vez o rito da única celebração do calendário de festas populares da capital baiana exclusiva para uma divindade afro-brasileira, sem a associação com uma santa ou santo do catolicismo. É o 2 de Fevereiro, dia de saudar Iemanjá (“Mãe cujos filhos são peixes”), a Rainha do Mar.

A tradição começou em 1923, em um momento de desespero, quando um grupo de pescadores resolveu presentear a Mãe d’Água pedindo fartura na pescaria e um mar tranquilo. O rito ganhou projeção a ponto de ofuscar a festa da padroeira do bairro, Nossa Senhora Sant’Anna, que teve a sua festa transferida, na década de 1970, para o dia litúrgico, 26 de julho, e Iemanjá consolidou o seu protagonismo. O registro da Festa de Iemanjá como Patrimônio Cultural de Salvador no “Livro do Registro Especial dos Eventos e Celebrações” ocorreu em 2020, por meio do Decreto nº 32.122, de 1º de fevereiro.

Rio Vermelho. Salvador Capital Afro. Foto Jefferson Dias.

“Segundo os cronistas, ela começou por uma substituição: como o padre da Igreja de Santana recusou-se a atender ao pedido dos pescadores do bairro de celebrar uma missa solene, eles se dirigiram a uma mãe de santo, que sugeriu a oferenda a Iemanjá”, conta o antropólogo Ordep Serra, no livro Rumores de Festa, o sagrado e o profano nas “festas de largo” da Bahia. Protetora dos pescadores, jangadeiros e homens que ganham sustento no mar, a divindade também é conhecida como Janaína, Rainha do Mar e Odò Ìyá (Mãe do Rio). Além de mãe, a divindade é considerada a protetora da cabeça.

O rito do presente de Iemanjá

O auge é a entrega do presente principal que os pescadores levam ao mar acompanhados pelo afoxé Filhos de Gandhy, no final da tarde, na embarcação Rio Vermelho, mas o dia é repleto de atos que integram o conjunto de homenagens, que começam com cerca de duas semanas de antecedência, com a movimentação de pessoas que passam pela Casa de Iemanjá (Casa do Peso) para deixar oferendas.

“O rito do presente de Iemanjá, desde o seu princípio e durante muitos anos, girava em torno de um único núcleo principal: os pescadores da Colônia Z1. Eram eles que celebravam, organizavam e se responsabilizavam pelo preparo e entrega do balaio. A partir dessa necessidade, tendo como principal instrumento a fé, foi tecido ano após ano esse fio que conduz hoje milhares de pessoas a reverenciar Iemanjá a cada 2 de fevereiro”, explica a jornalista Talula Mel, mestranda do Pós-Cultura (Ufba), que faz pesquisa interdisciplinar sobre a festa.

No dia da festa, uma alvorada, por volta das 5h, marca a chegada do presente principal (uma escultura geralmente elaborada por um artista plástico), que os pescadores da colônia, que o mantêm sob sigilo até este momento, colocam no caramanchão (espécie de barracão) entre a Casa de Iemanjá e a Igreja de Sant’Ana.

Ao redor do presente são colocados balaios de palha lotados de presentes deixados por devotos, que formam extensa fila contornando a orla do bairro. Há quem opte por deixar a oferenda na beira da praia com os pés na areia, ou quem prefira subir nas pedras, ou pagar pelo serviço de pescadores para levar a oferenda a um trecho mais distante. Mas também há quem só confie em deixar a oferenda junto ao presente principal, como uma espécie de garantia da entrega do pedido de proteção, prosperidade e fartura no endereço certo. Sabonetes, talcos, bonecas, espelhos, perfumes, flores, anéis, colares, fitas, brincos, pentes, barcos e maquiagem lideram a lista de agrados, embora tenha crescido a preocupação com o aspecto ambiental, dando-se prioridade a itens que não causam danos ao meio ambiente.

Rio Vermelho. Salvador Capital Afro. Foto Jefferson Dias.

A partir daí tem início a preparação religiosa realizada por integrantes do terreiro de candomblé escolhido para este fim, que, no ano do centenário, será a Casa de Oxumarê, terreiro localizado no final de linha do bairro da Federação, cujo líder espiritual é o babalorixá Sivanilton da Encarnação da Mata, Babá Pecê. Todo o presente é construído sobre uma caixa de madeira oca, onde são acondicionadas as comidas votivas de Iemanjá e os demais elementos, com natureza reservada aos segredos do candomblé, antes da entrega em alto-mar.

Dessa forma, durante o xirê, que se estende até o horário da entrega pelos pescadores, integrantes do terreiro responsável do ano vão arrumando os balaios e regando os presentes com alfazema, reforçando o cheiro característico do bairro no dia 2. Além dele, terreiros de umbanda e candomblé realizam cultos ao longo da extensão de areia, como a manifestação, também, de caboclos, como os marujos. O orixá (nome das divindades no candomblé de nação ketu) Iemanjá, na nação (designação para identificar a origem da tradição do culto) ketu, é cultuado na tradição angola como o inquice (nome das divindades no candomblé de nação angola) Kayala e Kokueto; e na nação jeje, o vodum (nome das divindades no candomblé de nação jeje) denomina-se Aziri Kaia.

Em mais uma especificidade dessa manifestação, antes da entrega do presente de Iemanjá, a cinco quilômetros do Rio Vermelho, o início da madrugada é dedicado para a dona das águas doces. O mesmo terreiro que faz o presente da Rainha do Mar faz antes o pedido de proteção para Oxum, com a entrega de um balaio com flores amarelas, perfumes e outros presentes. O templo também é aberto no Dique do Tororó.

Além da religiosidade

Após a ‘obrigação’ com a dona da festa, o destino da maioria é certo. Quem não aproveita o embalo e segue grupos de samba, fanfarras, dentre outros, que circulam pelas ruas do bairro, aproveita o resto do dia em festas privadas com shows, com a feijoada tradicional ou a de frutos do mar reinando absoluta no cardápio. Tão abrangente como o seu domínio, a Festa de Iemanjá é um universo de experiências e emoções.

Documentário Festa de Iemanjá – Fabíola Aquino

Cores: prateado, azul-claro e transparente.

Saudação: Odoyá, na tradição ketu, e Kiua Kayala mameto mazenza, na nação angola

Caminhos do Mar – Gal Costa

Yemanjá Rainha do Mar – Maria Bethânia

O mar serenou – Clara Nunes

Dia 2 de fevereiro – Dorival Caymmi